Por onde andará Engel?
Não dá para escapar de dezembro, é um
mês inevitável. Perdoem essa conclusão bineuronial em baixo dos caracóis de
louras madeixas, claro esteja. Os outros meses também o são, mas dezembro é
dezembro e acabou-se a história no cu da vitória como diziam algumas velhas
tias que devem estar no limbo e umas vizinhas folgazãs que jogavam um charme,
nem sempre discreto charme, sobre a rapaziada do bairro que estava “no ponto”.
Dezembro é foda, pois traz a sensação de que tudo terminou, de que o mundo
acabou, de que o que não foi para lixo foi pra baixo do tapete...
Mil
desculpas, mas aqui já confesso que tenho bronca de gente que baba ao fazer
pregação do descarte. O que é isso? Dá a impressão que a vida é um monte de
copinho de plástico de cafezinho de repartição ou copo ao lado do bebedouro da
sala de espera que às vezes nem água gelada tem na torneirinha indicada para a
sede do sedento cliente. E pasmem! Esse é um risco que todos os nós corremos:
ter cara de copo de plástico, um iplaczinho vagabundo amassado na mão do
distinto ou da distinta e que se não acabar na lixeira pode ir para lugar
incerto e não sabido ou entupir os bueiros da vida.
Tudo é bem mais simples. Dezembro é a última
folha do calendário, as últimas páginas das agendas que já bastariam para dizer:
te cuida capivara que a maior façanha do Demônio é fazer que ninguém acredite
nele. A referência ao Demo (não é videoclipe, pliss!) peguei no romance
Shikasta, da escritora Doris Lessing, que morreu em novembro do ano passado, em
Londres. Era filha de ingleses, nasceu na Pérsia e viveu muitos anos na África.
Preciso ler mais livros dela, romances que fui comprando ao longo tempo, mas
que fazem parte do que chamo minhas leituras avulsas. Eles estão sempre à vista
e lá uma hora eu pego algum e me deixo levar.
Você
acredita em dezembro? Acha que ele fechou um ciclo? Você está enlouquecidamente
fazendo lista de prioridades e promessas para o próximo ano achando que viverá
o neo Renascimento? Remoendo pecados que não quer mais cometer? Dezembro é
igual ao Demônio e nem se abala com o sinal da cruz. Você não precisa acreditar
em dezembro, ele nem abre mão dos seus disfarces esgueirando-se entre uma tal
generosidade que enche o saco de todos os Noel, Santa Claus ou Saint Nicholas
ou sabe lá quem mais que se arvore a ser doador de alegrias e felicidades
devidamente contabilizadas. É um mês em que os sonhos custam caro e deixam
muita gente no vermelho.
Daí
que a tal generosidade também pode ser precificada. Arrisco-me a levar pedradas
ao lembrar que “A esmola quando é muito, o santo desconfia”. Será? Numa terra
onde há mais oratórios do que santo como o Brasil, a esmola tem beirado os
milhões e bilhões de reais e ou milhões de dólares dependendo do freguês sem
ter que dividir tanto pelos milagreiros. Esmola ganhou o pomposo nome de
propina, de dinheiro lavado pela corrupção e pelo tráfico.
Pois
é, tempos de festa e eu aqui com essa dureza de alma. E quem vai querer ouvir
uma alma descrente quando a maioria não quer nem passar ao lado dos
desmancha-prazeres?
Vou
fingir que sucumbi, até porque dezembro não veio pra me deixar triste, mesmo
com toda a carga de tristeza que ele esconde do outro lado do jegue que se
mostra apenas num ângulo lateral. Sem falar nas coitadas das renas carregando o velhote
gordo com sua montanha de presentes. É mole? Nem tecnologia e nem inovação para poupar
os pobres animais do peso da carga...
Pois
bem, a semana passou e não consegui escrever no sábado e nem no domingo. Alguns
compromissos irrecusáveis me tiraram de casa. Dezembro faz a mágica de resgatar
gente que andava sumida ou pelo mundo. Isso é o bom da história. Mas mexe com minha crescente sociofobia.
Nem
em foto pensei para colocar no meu Diário da Berlinda, até que fui salvo por um
amigo alemão que me mandou uma imagem de lá das terras de Deutschland, onde
aparece uma placa com o nome Engel, um dos personagens do meu livro. É incrível
como personagens ganham vida e assim aconteceu, Engel veio me visitar em
companhia do amigo Gunter, dois maluquinhos, um na ficção e outro do mundo
real.
É
uma coisa que começou desde que comecei a escrever. Os personagens acabam
povoando nosso mundo real. E dizem coisas, deixam pistas, pensamentos,
provocações como esse trecho do capítulo final de Shikasta, de Doris Lessing.
Na solidão de uma cidade que está sendo construída, o personagem escreve sobre
os homens, iguais ao longo das eras:
“Pobre povo do passado, pobre povo, tantos e tantos, por milhares de anos, sem
saber nada, tropeçando e procurando e desejando algo diferente, mas sem saber o
que lhes tinha acontecido, nem o que desejavam.”
“Não
posso deixar de pensar neles, nossos ancestrais, o pobre animal-homem sempre
matando e destruindo porque não podia fazer diferente.”
“E
isso continuará para nós, como se estivéssemos sendo erguidos lentamente e
envoltos e purificados por um vento suave e cantante que limpa nossas mentes
confusas e nos protege e cura e nos alimenta com ensinamentos jamais
imaginados.”
“E
aqui estamos nós, todos juntos, aqui estamos...”
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