sábado, 6 de julho de 2013

Elemento: solidão


Berlim. Manhã de sol. Mauerpark. Prenzlauer Berg. By Ronald Junqueiro.
 Solidão não pode ser comparada ao silêncio absoluto, ao silêncio de um minuto pelos mortos e à ausência que atribuímos a coisas e pessoas que povoam recônditos criados em nossa memória ou ao vazio aberto pela desocupação recente de um espaço próximo a nós. Solidão não é sombria como é o abandono, ledo engano. Ela não é coisa do passado e nem o passado é atributo para a existência da solidão, posto que seja presente imediato.  Nós somos a solidão. E assim seremos até o fim. E quando tentamos nos enganar dizendo que ela é apenas uma capa que se pode colocar num cabideiro atrás da porta, ela se revela em reflexos no espelho ou em superfícies espelhadas que nos atraem - e nas sombras. A solidão é nossa pele, estamos nus diante de nós mesmos.

Escrever afinou meus sentimentos com a solidão no que ela representa como abrigo ou caverna.  Às vezes nos basta um teto, o aconchego da casa sem habitantes. Às vezes precisamos da alma dos bichos da noite para nos aquietarmos numa escuridão que, se para os outros pode parecer medonha, assustadora, provoca em nós sensação de brilho intenso, pois a luz vem de outra fonte e pode ser uma epifania.

Trazia na cabeça um tratado de coisas ouvidas aqui e acolá sobre escrever como fazem os escritores e poetas.

Escrever era o meu ofício nos vários anos da minha vida que passei numa redação de jornal. Mas ali o barato era outro, elogio e esculhambação geral eram o chiclete já gasto e sem gosto na boca do editor, era uma época quando essa onda de assédio moral não sabia nem o que era uma beira da praia. E o texto lutava contra o tom burocrático da notícia. No início, com todo o entusiasmo de foca, pintava sonhos inconcebíveis de ser jornalista internacional, correspondente de guerra. Mas o tempo e os desvios cuidaram de desligar o fogo e destampar a panela de pressão do onírico.

Nunca havia passado pela minha cabeça ser escritor. Ou melhor, me candidatar à profissão de escrever como escritor. Havia em mim uma sensação remota da impossibilidade de ser e o que eu gostava mesmo era de ler. E eu era um leitor fominha, voraz, sedento, com um enorme vazio a ser preenchido por histórias e personagens. Quando descobri o caminho para a biblioteca pública, era o próprio a rato a espantar as traças escondidas por traz das lombadas. A grana era curta para o luxo da farra literária, comprar livros não entrava no orçamento familiar, mas isso não impediu minha embriaguez da descoberta de que ler era porre sem ressaca de dor de cabeça. Mas volto ao tema depois.

Saquei, desde então, que a solidão não era privilégio do escritor, mas do leitor também. Você pode até compartilhar momentos de leitura como eu fazia quando garoto obrigado a ir até a casa de uma tia-avó cega para ler histórias que a ajudariam a cair no sono da sesta. A obrigação tenha compensações. Eu gostava de ler e exercitar a paciência para saber quando a velhinha estava dormindo. Na segunda página já lhe cutucava o braço, esbarrava na rede e esperava o sinal. A tia-avó cega pigarreava e eu chegava a praguejar algumas vezes, mas logo me arrependia. Não por remorso. Não queria desejar mal para a senhorinha que galopava para o centenário. Garoto interesseiro. Eu queria mesmo era que ela dormisse serena, roncando leve como fazia, pois os olhos eram brancos e não deixavam pistas de que a velha estava noutra. E quando ela não pigarreava mais dizendo que estava acordada e que eu deveria continuar lendo, eu vivia um extremo de felicidade. A libertação tem disso.

Eu marcava a página com um velho marcador de papelão, fechava o livro, depositava-o com todo o cuidado numa poltrona num canto do quarto, saia pé ante pé, me enfiava no corredor e desembocava no quintal enorme da casa da cega, onde um taperebazeiro frondoso me esperava como se tivesse sido plantado num tapete amarelo de taperebás, fruta que cheira na minha lembrança. Era o fruto da liberdade. A liberdade de gosto azedinho que virava suco e picolé. E até chibé.

Não quero desviar tanto do assunto. O que me passa pela cabeça, quando escrevo neste diário, é o quanto a solidão me alimentou em mão dupla: como leitor e agora nesses primeiros passos de escritor ou pretendente ao ofício, e ambos são vícios.

A solidão não é o pior elemento das nossas vidas como dizem à boca pequena. Ela tem uma natureza benfazeja, com o gosto da fruta que mais lhe trouxer felicidade à alma e ao paladar.


Quer provar? Escreva. 

3 comentários:

  1. Eu só quero saber o que é chibé. E não vou procurar no Google, não. Quero uma explicação "nativa".
    Amigo, você veja bem. Como é curioso o fato de não podermos escapar aos nossos próprios desejos, não é? Aquele sonho, que não te pertencia, de sair pelo mundo, contando a dor alheia, saiu do casulo, este sim, todo seu, para virar borboleta nas suas aventuras pelo mesmo mundo afora. E agora, com a sua cara, você volta e se rende à "bendição" de nos contar esses caminhos em um belo livro... É apenas o primeiro, o sei bem porque tu já me contaste. Não abro da minha cópia autografada e este blog, tão finamente masculino, ficou um arraso! Longa vida ao Diário de Berlinda e aos teus escritos.
    Beijos!

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  2. Acho momentos de solidão necessários. É o momento que eu posso curtir estar comigo mesma. Tem coisas que prefiro fazer sozinha, como ler, assistir a um filme, visitar museus e exposições, que é um hobby meu que poderia ser feito na companhia de outra pessoa, e às vezes faço, mas gosto de contemplar no meu ritmo. Escrever também me exige solidão. Também penso que a solidão não é sombria, aliás, gosto dela.

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