Berlim. Manhã de sol. Mauerpark. Prenzlauer Berg. By Ronald Junqueiro. |
Solidão não pode ser comparada ao
silêncio absoluto, ao silêncio de um minuto pelos mortos e à ausência que
atribuímos a coisas e pessoas que povoam recônditos criados em nossa memória ou
ao vazio aberto pela desocupação recente de um espaço próximo a nós. Solidão
não é sombria como é o abandono, ledo engano. Ela não é coisa do passado e nem
o passado é atributo para a existência da solidão, posto que seja presente
imediato. Nós somos a solidão. E assim
seremos até o fim. E quando tentamos nos enganar dizendo que ela é apenas uma
capa que se pode colocar num cabideiro atrás da porta, ela se revela em
reflexos no espelho ou em superfícies espelhadas que nos atraem - e nas
sombras. A solidão é nossa pele, estamos nus diante de nós mesmos.
Escrever afinou meus sentimentos com a
solidão no que ela representa como abrigo ou caverna. Às vezes nos basta um teto, o aconchego da
casa sem habitantes. Às vezes precisamos da alma dos bichos da noite para nos
aquietarmos numa escuridão que, se para os outros pode parecer medonha,
assustadora, provoca em nós sensação de brilho intenso, pois a luz vem de outra
fonte e pode ser uma epifania.
Trazia na cabeça um tratado de coisas
ouvidas aqui e acolá sobre escrever como fazem os escritores e poetas.
Escrever era o meu ofício nos vários
anos da minha vida que passei numa redação de jornal. Mas ali o barato era
outro, elogio e esculhambação geral eram o chiclete já gasto e sem gosto na boca
do editor, era uma época quando essa onda de assédio moral não sabia nem o que
era uma beira da praia. E o texto lutava contra o tom burocrático da notícia.
No início, com todo o entusiasmo de foca, pintava sonhos inconcebíveis de ser
jornalista internacional, correspondente de guerra. Mas o tempo e os desvios
cuidaram de desligar o fogo e destampar a panela de pressão do onírico.
Nunca havia passado pela minha cabeça
ser escritor. Ou melhor, me candidatar à profissão de escrever como escritor.
Havia em mim uma sensação remota da impossibilidade de ser e o que eu gostava
mesmo era de ler. E eu era um leitor fominha, voraz, sedento, com um enorme
vazio a ser preenchido por histórias e personagens. Quando descobri o caminho
para a biblioteca pública, era o próprio a rato a espantar as traças escondidas
por traz das lombadas. A grana era curta para o luxo da farra literária,
comprar livros não entrava no orçamento familiar, mas isso não impediu minha embriaguez
da descoberta de que ler era porre sem ressaca de dor de cabeça. Mas volto ao
tema depois.
Saquei, desde então, que a solidão não
era privilégio do escritor, mas do leitor também. Você pode até compartilhar
momentos de leitura como eu fazia quando garoto obrigado a ir até a casa de uma
tia-avó cega para ler histórias que a ajudariam a cair no sono da sesta. A
obrigação tenha compensações. Eu gostava de ler e exercitar a paciência para
saber quando a velhinha estava dormindo. Na segunda página já lhe cutucava o
braço, esbarrava na rede e esperava o sinal. A tia-avó cega pigarreava e eu
chegava a praguejar algumas vezes, mas logo me arrependia. Não por remorso. Não
queria desejar mal para a senhorinha que galopava para o centenário. Garoto
interesseiro. Eu queria mesmo era que ela dormisse serena, roncando leve como
fazia, pois os olhos eram brancos e não deixavam pistas de que a velha estava
noutra. E quando ela não pigarreava mais dizendo que estava acordada e que eu
deveria continuar lendo, eu vivia um extremo de felicidade. A libertação tem
disso.
Eu marcava a página com um velho
marcador de papelão, fechava o livro, depositava-o com todo o cuidado numa
poltrona num canto do quarto, saia pé ante pé, me enfiava no corredor e
desembocava no quintal enorme da casa da cega, onde um taperebazeiro frondoso
me esperava como se tivesse sido plantado num tapete amarelo de taperebás,
fruta que cheira na minha lembrança. Era o fruto da liberdade. A liberdade de
gosto azedinho que virava suco e picolé. E até chibé.
Não quero desviar tanto do assunto. O
que me passa pela cabeça, quando escrevo neste diário, é o quanto a solidão me
alimentou em mão dupla: como leitor e agora nesses primeiros passos de escritor
ou pretendente ao ofício, e ambos são vícios.
A solidão não é o pior elemento das
nossas vidas como dizem à boca pequena. Ela tem uma natureza benfazeja, com o
gosto da fruta que mais lhe trouxer felicidade à alma e ao paladar.
Quer provar? Escreva.
Eu só quero saber o que é chibé. E não vou procurar no Google, não. Quero uma explicação "nativa".
ResponderExcluirAmigo, você veja bem. Como é curioso o fato de não podermos escapar aos nossos próprios desejos, não é? Aquele sonho, que não te pertencia, de sair pelo mundo, contando a dor alheia, saiu do casulo, este sim, todo seu, para virar borboleta nas suas aventuras pelo mesmo mundo afora. E agora, com a sua cara, você volta e se rende à "bendição" de nos contar esses caminhos em um belo livro... É apenas o primeiro, o sei bem porque tu já me contaste. Não abro da minha cópia autografada e este blog, tão finamente masculino, ficou um arraso! Longa vida ao Diário de Berlinda e aos teus escritos.
Beijos!
Letícia, também fui atrás do chibé!
ExcluirAcho momentos de solidão necessários. É o momento que eu posso curtir estar comigo mesma. Tem coisas que prefiro fazer sozinha, como ler, assistir a um filme, visitar museus e exposições, que é um hobby meu que poderia ser feito na companhia de outra pessoa, e às vezes faço, mas gosto de contemplar no meu ritmo. Escrever também me exige solidão. Também penso que a solidão não é sombria, aliás, gosto dela.
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