Falar sobre a construção de personagens
é tema que não se esgota e eu me sinto um amador para dizer que isso se faz
assim ou assado. Ideias, conselhos, experiências, dicas, literatura pertinente,
caramba! É um bombardeio interminável para quem busca pelas pedras preciosas no
mapa do tesouro da criação dos seus tipos inesquecíveis. Se os sites de busca
da internet forem acessados, então, prepare-se: é como entrar num mato sem
cachorro. Tempo, paciência, muita disposição e fôlego com direito a balões de
oxigênio extra... É coisa para quem tem espírito dos grandes navegadores com o
ideal dos argonautas. Navegar é preciso em mares nunca dantes navegados.
Todos nós temos nossos personagens
memoráveis e tantos e muitos que acabaram saindo das páginas dos romances para
ganhar vida em outras artes, como no cinema. E muitos personagens que habitam
páginas e páginas literárias foram inspirados em pessoas reais. Fico imaginando
como Machado de Assis soprou alma a Capitu e a alma Bentinho; como Flaubert foi
dando cores madame Bovary, como Frankenstein entrou para o mundo real como
metáfora do irreal, imortalizado pela escritora inglesa Mary Shelley. A
escritora, que tinha 19 anos quando escreveu sua ficção, não estava muito longe
do que a ciência apresentaria ao mundo depois, a clonagem em tempo real.
Num desses passeios pela internet
encontrei uma matéria publicada no jornal argentino Clarin, em novembro de
2002, na qual dez escritores falam sobre a criação de personagens. Cada um
deles abre uma porta para mostrar o seu mundo particular. Gosto do que diz a jornalista e escritora
espanhola Rosa Montero, de quem li apenas um livro, “A louca da casa” – isso
foi em 2004 e de repente a gente se dá conta nessas pequenas constatações que o
tempo corre numa velocidade impalpável. Não sei quando vou voltar para o
universo literário de Rosa Montero, mas anseio por isso.
A imaginação, chamada de a louca da casa
por Santa Teresa de Jesus, é o fio invisível que conduz tudo o que vivemos no
universo do livro, quando nos deparamos com a página em branco a ser preenchida
com nossos sonhos e delírios. Assim, Rosa nos conduz pelo romance, que trata da
autora e sua relação com a escrita, com todas as portas abertas para a
imaginação.
“É que nada é linear! A vida, a nossa
vida, a sua, a minha, a de todos, é um absoluto caos, uma confusão que a nossa
imaginação tenta organizar inventando, inventando... A sua vida nunca é clara,
definitiva, segura, firme. A vida é paródica, contraditória”, diz Rosa Montero.
Minha primeira incursão por esse
universo me levou por um dos caminhos que Rosa Montero sinaliza. A construção de
um universo ficcional dentro do universo real para onde inventei habitantes que
foram ganhando alma em cada sopro.
Lembro-me do encontro dos personagens
Leo e Miguel, quando eu escrevia o livro, cada um deles contando de si histórias
mirabolantes de personagens que fomos construindo (eles e eu) através
do diálogo na viagem que os levava a Berlim. E saquei que aquele era um momento
Frankenstein em perfeita união com a louca da casa. E quando eles começaram a
ganhar vida, houve momento em que virei refém deles, mas só num primeiro
momento. Depois vi que a história era minha, que a imaginação era minha e que
eles foram construídos para contar minha história ao sabor da minha imaginação.
Mas, na verdade, eles ganharam independência e viraram bons jogadores.
O que são personagens e como eles nascem?
São seres confinados entre páginas e capítulos e que ganham liberdade a cada
leitura quando caem nas mãos de alguém. Assim, numa sentença simples.
Eles podem aparecer das formas mais
inesperadas. Lembro-me de um exercício que eu fazia na época de escola, ao
escrever redações. Juntava o humor de um tio, com a magreza de um vizinho, a
voz grossa do irmão mais velho, a cara neutra do meu pai ao falar sobre
esoterismo e assim por diante. Então afinava a minha versão Frankenstein à
espera de um sopro de vida, uma identidade, um nome e um passado.
Estamos cercados por esse mundo visível
pronto para ser sequestrado pela imaginação. E depois que tudo começa não para
mais. Ficamos viciados em literatura.
Volto a James Joyce. Gosto como ele nos
faz materializar seus personagens com uma maestria própria. Como neste trecho
do conto “Contrapartida”, do livro de contos "Dublinenses".
“A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor,
uma voz irada, com estridente sotaque irlandês, gritou:
- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua
máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
“Que vá para o diabo”, resmungou o
homem, afastando a cadeira para levantar-se. Em pé, via-se que era alto e
corpulento. Tinha o rosto flácido e avermelhado; as pestanas e os bigodes
loiros. Seus olhos eram protuberantes e sujos. Levantou a tampa do balcão e passando
pelos clientes, saiu do escritório, pisando duro.
Com passos lerdos, subiu a escada até o
segundo patamar, onde uma porta exibia uma placa de bronze com a inscrição: Sr.
Alleyne. Parou ali, ofegante de cansaço e irritação. A voz estridente gritou:
- Entre!
O homem entrou na sala. No mesmo instante,
o senhor Alleyne, um homenzinho de rosto bem escanhoado e óculos de aro
dourado, alçou a cabeça por trás de uma pilha de documentos. Ela era tão
vermelha e calva, que parecia um imenso ovo posto sobre os papéis. O senhor
Alleyne não perdeu um segundo:
- Farrington? O que significa isto? Por
que sempre tenho de lhe chamar atenção? Pode explicar por que não tirou uma
cópia do contrato entre Bodley e Kirwan? Eu lhe disse que era para estar pronto
às quatro horas.
Ronald. Estou adorando o blog. Ler todo sábado, ensaios sobre literatura. Um aprendizado. Principalmente, para quem ensaia escrever ... Merci. Beijo. Suely.
ResponderExcluirAdorei o brincar de Frankenstein! O criador e sua criatura. É interessante montar um personagem. Penso comigo que um de contos deve ser mais fácil, mas e de livros? Em que eles circulam por vários ambientes, vários cômodos... Ou não. Lembrei agora de Kafka, na sua Metamorfose, o personagem passou a história toda dentro de um quarto, no máximo deu uma passada na sala. Mas e se o personagem for um aventureiro, nada caseiro, exigirá sair da rotina e ir em busca de novos rumos. Talvez provoque uma manifestação, com direito a passeatas e caminhadas nas ruas, exigindo sua liberdade, ou ameaçando uma greve caso não saia de casa: greve de fome e de criatividade até conhecer o mar. Já pensou? As nossas criações podem surpreender!
ResponderExcluirBeijos, Ronald!