Quando vi que dera o primeiro passo e que
escrevi os primeiros parágrafos do livro, compreendi que voltar seria um transtorno
sem tamanho. Fui buscar entre meus guardados o velho espírito de mochileiro,
que pode estar escondido num cantinho escuro de cada um. Eu já vivera algumas
aventuras do tipo, em viagens solo. Essa foi a lógica que usei para a viagem
que seria escrever o roteiro Belém-Berlim e vice-versa.
O meu primeiro tour europeu se deu meio
assim. Depois dos compromissos de uma
viagem de intercâmbio que me levou à Alemanha, deixei minha mala numa república
estudantil, peguei um trem em Frankfurt e fui bater perna pela Itália, Espanha,
Portugal e França. A minha primeira mochila, verde oliva, foi comprada numa
loja da rede El Corte Inglés, numa rebaja final com bons descontos, em Barcelona.
Antes eu tinha uma valise pequena, mas
ela não combinava com aquela ideia de liberdade traduzida por uma boa mochila.
Putz, minha coluna vertebral sofreu pra caramba!
Foi uma aventura inesquecível e uma
prova de coragem para alguém que decidiu botar a cara no mundo sem nenhum plano
na manga, nem plano B. A juventude tem essa coisa a seu favor, o destemor, o
ímpeto, o topar desafios para realizar um sonho.
Ao olhar para esse tempo, sinto que
fiquei um pouco mais covarde. Ou talvez mais ponderado, até porque não tenho a
energia de antes para carregar uma mochila dessas de botar o pé na estrada, que
acompanha a gente na aventura de comer poeira e estar para o que der e vier.
Mas ressuscitei o mochileiro noutra
dimensão, das letras, dos roteiros imaginários, por entender que escrever
seria, também, como pegar estrada, entrar numa estação e seguir para qualquer
destino; reservar um voo e sentir cheiro de aeroporto...
Só que para escrever havia um plano e me
vi obrigado a adotar uma disciplina em função dos prazos a cumprir. Exercer a
disciplina não me era estranho, por educação, por exercício da profissão e por
ter em certa dose uma postura meio prussiana para tarefas. Só que aqui havia um
diferencial: eu estava entrando numa área nova e experimentando o que eu já
ouvia há algum tempo sobre o que era o processo criativo. E daí a coisa muda de
figura.
Essa realidade de viajante teve uma
influência muito grande na concepção do romance, principalmente no trabalho que
chamo de “escavação da memória”. Enquanto escrevia o livro e revirava cadernos
de anotações e agendas, encontrei um tíquete do metrô de Madri e um simples
pedaço de papel abriu uma porta para memória de situações incríveis como andar
pela cidade, parar nas praças, entrar em museus ou simplesmente ficar num
cruzamento olhando o movimento das avenidas e calles, como por exemplo, na
incrível rua Gran Via, em Madri, que percorri de ponta a ponta.
E logo depois
me veio à lembrança a vendedora de passagens na estação de trem de Barcelona,
simpática moça, confessando para mim, quando comprava passagens para Madri, que
era colecionadora de moedas estrangeiras. E veio a pergunta meio tímida se eu
tinha moedas do Brasil para vender-lhe.
- Hay monedas de Brasil?
- Tengo unos cuantos, pero te puedo dar...
- No puedo aceptar sin pagarle. Te puedo
dar sellos de España.
E assim ficamos acertados. Dei à chica
um punhado de moedas, acho que cruzeiros, e ela me deu em troca uma cartela com
quatro selos. Enquanto comprava a passagem ela me forneceu algumas informações
básicas e até me indicou um local para hospedar-me, a Pensão do Juan. Explicou
como chegar à pousada. Não precisava pegar táxi. Bastava atravessar uma praça,
pegar uma rua à esquerda e seguir duas quadras. Disse-me que podia falar a Juan
que ela havia indicado a pensão. Eles eram amigos. Era um prédio antigo,
de dois andares e ficava pertíssimo do incrível boulervard Las Ramblas, tudo
o que eu precisava para conhecer a noite de Barcelona.
Aproveitei para dormir a tarde toda.
Acordei, tomei um banho que me custou algumas pesetas. Aprendi que se pagava
caro por água na Europa. E fui para Las Ramblas. Noite memorável. Entrei numa
sessão do cine Coliseo para assistir a estreia de Flashdance. Fiquei apaixonado
por Jennifer Beals.
Jamais esqueceria este dia, pois na
volta para Pensão do Juan, desci Las Ramblas iluminada e fervilhando. Meu olho
bateu direto numa tenda que trazia na fachada um nome familiar: Terraza Brasil.
E para completar a noite, duas putas
davam porrada em um marinheiro por terem sido negaceadas, pelo que entendi, ou
levaram o calote, não sei. Mas tudo era tão dejà vu. Barcelona é cidade de
porto, como Belém. A primeira imagem que me veio à memória naquele momento foi
a do Bar do Parque, da Praça da República e do Theatro da Paz.
Escrevi “Berlinda – asas para o fim do
mundo” com se fosse um viajante. É o que fazemos na vida. Estamos sempre a
bordo de alguma coisa que não precisa ser um barquinho ou um transatlântico,
nem lombo de burro, nem mesmo um trem bala. Mas fazemos paradas aqui e acolá, e
conhecemos gente que passa, uns demoram-se um pouco mais e há sempre uma
paisagem que ganha vida. E nosso olhar.
No mínimo, dá para escrever um diário de
bordo.
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