sábado, 27 de julho de 2013

Frankenstein e clonagens

Álbum com crônicas familiares. Grande fonte. By Ronald Junqueiro
No momento em que tracei o primeiro roteiro para o que eu imaginava ser o romance, vi-me diante de um grande latifúndio literário, com a forte impressão de que estava completamente perdido numa terra de ninguém. Piração criativa: como ocupar esse território imaginário, como calcular a densidade populacional, ou melhor, a densidade demográfica desenhada pelos personagens? E por onde começar? Narrar em primeira pessoa ou em terceira pessoa? Total crise existencial de um amador e amante dos livros. De repente, tudo virou um grande exercício pontuado por prazos e obrigações e não dava para voltar atrás.  Sabe aquela sensação de entrar no mato sem cachorro? Não quero exagerar o sentimento como se estivesse vivendo uma autêntica tragédia grega, mas já me sentenciava o desastre provocando pelo impulso, por ato pouco pensado que levou a me candidatar à bolsa de criação literária. O projeto era bom, achava eu. Mas projeto é projeto, realiza-lo são outros quinhentos.

Beco sem saída. Quando me inscrevi à bolsa, logo comecei a fazer escavações na memória e nos meus guardados. Entre impulsos e desânimos, o livro entrava no casulo das ideias fixas. Em abril de 2010, comecei a antecipar coisas, sem qualquer garantia, como por exemplo, pedir demissão do emprego e me inscrever num curso de verão em Berlim. Fiz conta na ponta do lápis e decidi arriscar viver meu ano sabático. Em agosto, três semanas antes de eu viajar para a Alemanha, abri meu e-mail e, grata surpresa e inexplicável alegria, estava lá a convocação da Funarte para que eu providenciasse documentação pedida pelo edital, pois meu projeto para escrever o romance havia sido selecionado. Eu tinha um ano para escrever o livro.

Deu um branco. Eu não queria pensar. Arrumei a mala e me mandei para Berlim.

Voltei para Belém no início de novembro e abri a porta para a louca da casa, a senhora imaginação. Iniciei meu autoexílio a bordo da berlinda na qual eu iria viajar escrevendo o romance, que já tinha título antes mesmo de eu começar a escrevê-lo: “Berlinda – Asas para o fim do mundo”.

A frase “asas para o fim do mundo” que juntei ao título principal é da letra da música “Estado de espírito”, feita em parceria com o compositor paraense Vital Lima, gravada depois da queda do muro de Berlim. A composição do título selou o destino dessa viagem e me inspirou a escrever o livro pelo último capítulo. Mas o “estalo de Vieira”, de fato, só aconteceu no dia em que sentei em frente ao computador e escrevi a primeira frase do primeiro capítulo. É onde começa o mundo de Leo.

Leo representa bem o que falei anteriormente sobre “personagens frankensteins”. Eu costurei várias peles, juntei vários sopros para dar-lhe uma alma, sete vidas e olhares e histórias. Do mesmo modo fui construindo os outros personagens que gravitam em torno dele e que, por sua vez, são centros de gravidade que atraem Leo no desenrolar do romance. Essa experiência, mais que um jogo de encaixe, foi um encontro de emoções e seus matizes.

Quando fui construindo Leo, não queria carregar nas tintas de um protagonista caricato, evidente demais, desses que querem atrair toda audiência para si. Leo, na minha imaginação, era um ser comum que transitava por um mundo comum de pessoas comuns que seguem o mesmo rumo feito de sombra e anonimato. Um tipo facilmente encontrável em qualquer lugar do mundo, sem a dimensão de um Policarpo Quaresma, um dos personagens mais marcantes das minhas leituras de adolescente, criado pela genialidade de Lima Barreto. Aliás, guardo na memória e nas minhas estantes tipos assim como Policarpo Quaresma ou os Josés e Aurelianos Buendia que nasceram pelos dons do mago da escrita Gabriel Garcia Marques no livro “Cem anos de solidão”, uma das minhas paixões literárias despertadas pelos latino-americanos. Paixão do tipo pessoal e intransferível.

E o que não dizer das grandes histórias de amor e tragédia que eternizaram Romeu e Julieta, trazidos ao mundo por William Shakespeare? Ou Eugenia Grandet, de Balzac? Ou a balzaquiana Julia de “A mulher de trinta anos"?

Não há como esquecer Macunaíma, o anti-herói de Mario de Andrade, no mais puro modo brasileiro de ser e que ganhou a cara perfeita através do ator Grande Otelo, no cinema. Inesquecível!


E o mundo de Alfredo, filho da negra Amélia e do major Alberto, criações de Dalcídio Jurandir? Pujante literatura amazônica. 

Diante desse mundo vasto, vasto mundo e pouquíssimas soluções não é possível um favorito. Dá para ter apegos e amores para os quais a literatura bem serve de inspiração.

Não são apenas características físicas que fazem os personagens. Há sutilezas do sentimento e do humor, traços de caráter e todo o universo ao qual pertence este ou aquele. É uma composição complexa e matéria-prima plástica nas mãos do leitor que, nesse encontro estabelece uma relação com seu próprio universo. Quem corporifica tudo isso é o leitor.

Ainda que não seja explícita como a interatividade da era tecnológica que vivemos, há uma interatividade íntima, com vida própria, que muitas vezes extrapola o ponto final de uma história. Há livros que me marcaram tanto que sinto saudade dos personagens como se eles fossem reais. E falo aqui apenas da ficção, pois se atravessarmos a ponte de outros gêneros literários, há outras infinitas galáxias a explorar.

O que quero dizer é que estamos cercados de histórias e personagens e que, se nos dispusermos a dar um destino a eles, escrever é um caminho cheio de aventuras, do inusitado.

Experimente passear por um álbum de fotografias antigas da família. Com a (boa ou má) intenção de escrever, por exemplo, um conto. Tente imaginar o que pode sair daí.

A foto de abertura dessa postagem mostra um álbum de fotografias e histórias que atravessam séculos e pertence à família Buechler, de Frankfurt. E tem uma guardiã, a Angelika. É uma edição primorosa, como um antigo scrapbook, com registro de quatro gerações, mais ou menos. Acho que todas as famílias deveriam ter um guardião dos álbuns de fotografias, que é, na real, uma viagem no túnel do tempo.

Clique em “Estado de espírito”, uma das músicas inspiradoras do livro que vem por aí.


Estado de Espírito
(Vital Lima/Ronald Junqueiro)

Qualquer amor é possivel
se estou disposto
se o caminho é livre
tanto faz ser torto

Não use meias palavras
não importa o tempo
só me deixe a trilha
e o cio ao vento.

Ô, nada me impedirá
de ser meu destino
nem mesmo as muralhas da China...
nem o muro de Berlim...
nem bala perdida...

Nem droga de vida!

Tudo me é transparente
minha pele é ímã.
é casca de fruta!
é tua resina.
Sou porta e janela abertas
( posso ser casulo )
posso ser teu poço fundo,
ponte da tua coragem
para o meu mergulho
ou tua asa
para o fim do mundo!

Um comentário:

  1. Ronald, eu ia apenas dar uma olhadinha e acabei por ler todas as postagens.
    Como te falei na mensagem privada, o primeiro contato, o visual foi me convidou a examinar a arte do blog. Está muito bacana. Sóbrio, mas criativo, sugestivo. E belo.
    Depois tive outras coisas a fazer e hoje li teus escritos, que me deixaram muito curiosa para ler o livro. Muito mesmo.
    Adorei que tenhas citado a Rosa Montero. Gosto muito dela, já li vários livros dela, que comprei em língua espanhola, naquelas edições de baixo custo, como se usa no Uruguai. Mas o La loca de La casa eu quis comprar na edição normal. Eu sempre a cito, porque acho que ela tem opiniões interessantes sobre a literatura.
    Bueno, que tenha vida longa a tua obra, Ronald. E já te dou o parabéns pela caminhada até aqui.
    besos

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