Entre o Olimpo imaginário e percepções terrenas. By Ronald Junqueiro
Belém e Berlim. A sonoridade das duas
palavras dançava na minha cabeça como o badalo de um sino anunciando uma boa
nova - ou um funeral. São palavras meio anasaladas e de um som metálico como o
que soa em Belém, por exemplo, na poesia de Manoel Bandeira:
Bembelelém!
Viva Belém!
Nortista
gostosa
Eu
te quero bem.
Berlim e Belém. O que
podiam ter em comum as duas cidades que seriam cenários do romance que
eu queria escrever? O tempo que eu percorri entre cá e lá e seus intervalos,
que revelavam encontros e desencontros de almas gêmeas e de almas avulsas? Eu
sentia que as duas se alimentavam de paixões inusitadas. Esse ir e vir começou
em 1983, o ano em que conheci o muro e atravessei a fronteira para ‘desvendar’
os enigmas de Berlim Oriental, numa dessas tardes assim. Mas o muro era apenas um artifício, pois lá e cá os corações batiam como
qualquer coração.
Manoel Bandeira não foi
o único a se apaixonar por Belém. Outro modernista, Mário de Andrade esteve por
aqui e tudo o que viu e sentiu registrou no livro ‘O turista aprendiz’. E a
lista de amantes da cidade é extensa.
Mario de Andrade Velas encarnadas de pescadores,
Velas
coloridas de todas as cores,
Águas
borrosas de rios-mares,
Mangueiras,
mangueiras, palmares, palmares,
E
a barbadianinha que ficou por lá!...
Que
alegre porto,
Belém
do Pará!
Que
porto alegre, Belém do Pará!
Vamos
no mercado, tem munguzá!
Vamos
na baía, tem barco veleiro!
Vamos
nas estradas que tem mangueiras!
Vamos
ao terraço beber guaraná!
Oh
alegre porto,
Belém
do Pará!
O
sol molengo no pouso ameno,
Calorão
batendo que nem um remo,
Que
gostosura de dormir de dia!
Que
luz! Que alegria! Que malincolia!
E
a barbadianinha que ficou por lá!
Que
alegre porto,
Belém
do Pará!
A
barbadianinha que ficou por lá
Relando
no branco dos moços de linho
Passeando
no Souza, que lindo caminho!
À
sombra de enorme frondosa mangueira,
Depois
que choveu a chuva para-já!
Oh
barbadianinha,
Belém
do Pará!
Lá
se goza mais que em New York ou Viena!
Só
cada olhar roxo de cada morena
De
tipo mexido, cocktail brasileiro,
Alimenta
mais que um açaizeiro,
Nosso
gosto doce de homem com mulher!
No
Pará se para, nada mais se quer!
Prova
tucupi! Prova tacacá!
Que
alegre porto,
Belém do Pará!
Belém é assim, feita de
amores e dores.
Lembro-me das primeiras
aulas de História do Brasil, com alguns capítulos dedicados ao Pará, nos quais
conheci a “Tragédia do Brigue Palhaço”, palco da agonia das 250 pessoas
asfixiadas no porão do navio a mando do comandante naval inglês John Pascoe
Grenfell, em 1823. E na sala de aula ouvi também sobre a Cabanagem. O levante
do povo contra as forças dominantes, iniciado em 1835, e tido como a maior
rebelião popular ocorrida no Brasil, deixou mais de 35 mil mortos no Pará -
cerca de 30% da população do estado na época. Belém viveu dias trágicos e
sangrentos. Esses episódios ficaram na minha memória de estudante.
Um passeio pela
história pode ser um grande programa para se descobrir que a cidade parece ter
sido construída para ser um cenário aberto a todas as produções reais ou
imagináveis.
A tragédia de Berlim,
mais próxima de nós na linha do tempo, está ligada dramaticamente à Segunda
Guerra Mundial. Uma cidade marcada a ferro e fogo na memória da humanidade, presente
até os nossos dias. A destruição de Berlim é um dos episódios mais explorados
no cinema e na literatura. Lembro que um dos filmes que me causaram grande
impacto foi “Alemanha, ano zero” (1948), que faz parte da trilogia criada pelo
cineasta italiano Roberto Rosselini. Virou um dos meus filmes de cabeceira.
Quero falar dele mais adiante.
Belém testemunhou
também o ódio gerado pela guerra quando, em agosto de 1942, um navio mercante
brasileiro bombardeado por um submarino alemão afundou perto daqui. A
população, revoltada, destruiu e incendiou casas de imigrantes alemães,
japoneses e italianos que foram levados para um ‘campo de concentração’ criado
em Tomé-Açu.
A dor e o trágico unem as duas cidades.
Meu olhar subjetivo sobre Belém e Berlim não me deixava dúvida de que elas eram cidades de almas gêmeas. Este foi um dos pontos em cruz com que contei uma história, sem nem mesmo ter a habilidade das bordadeiras em cada ponto em nó. Arrisquei. E deixei solta a imaginação, com a intenção de transformar cada capítulo escrito em pixels, palavra que lembra o serrilhado dos pontos em cruz e, a meu ver, representa o que é o texto, quando a partir dele construímos cenários e personagens.
Pixel é uma palavra formada
pela composição dos termos Picture e Element ou elemento da imagem.
Assim como se espalhou pelos quatro ventos nas cabeças pensantes e não pensantes que uma imagem
vale mais que mil palavras, penso também que um texto é tão artes plásticas
quanto um quadro de Paul Gauguin ou tão revelador quanto uma fotografia de
Cartier Bresson. O texto guarda em si tanto o óbvio e a sutileza quanto os guardam os elementos da
imagem. A qualidade é uma discussão para depois.
Escrever o romance
fez-me pensar que a vida é um painel de múltiplas conexões e percepções. Curto
a ideia dessas histórias contadas com movimentos de fios luminosos e coloridos,
na forma artesanal do ponto em cruz. Isso evoca imagens serrilhadas de uma
imagem aumentada exageradamente na tela do computador sugerindo o que numa
resolução normal representa os milhões de pixels que formam a imagem pronta
para impressão. Na literatura, a vida é impressa em texto.
Vivi o medo desses
delírios do escrever e isso me permitiu alimentar meu espírito ficcional e
entregar-me à intuição, onde técnica ou método eram elementos ausentes em
determinados momentos. O medo me ajudou a equilibrar prazer e exaustão, algumas
vezes.
E me vali, na minha
cota de delírios, do auxílio luxuoso de coisas que povoavam minha cabeça, como
algumas leituras de anos atrás sobre mitologia, um tema que me encanta até
hoje.
Quem se lembra das
Moiras da mitologia grega? Aquelas três irmãs medonhas que decidiam sobre a
vida dos seres humanos e dos deuses? Acho que temos alguma coisa delas dentro
de nós quando assumimos o papel de autor. Determinamos a vida e a morte dos personagens
e nem Zeus contesta a decisão. E assim abriguei na minha imaginação as deusas
Cloto, Láquesis e Átropos, responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da
vida. Elas estão representadas na ‘Roda da Fortuna’, carta do Tarô.
Na mitologia romana
elas são conhecidas como Parcas. São as deusas Nona, Décima e Morta. Nona tece
o fio da vida por nove meses, Décima cuida da sua extensão e Morta corta o fio.
Elas são chamadas também de fates, de onde provém a palavra fatalidade.
Durante todo o tempo em
que escrevia o romance, dei-me conta de que essas figuras lúgubres estão mais
perto de nós do que pensamos. Meus primeiros passos na escola aconteceram numa
sala de aula informal. Andava duas quadras e ia bater na porta de um casarão na
Batista Campos onde moravam três senhoras solteironas. Uma delas era a
professora que alfabetizava as crianças do bairro e arredores. A sala de aula
era uma varanda meio escura, com luz vazando de uma janela que dava para um
saguão de onde vinha cheiro de galinhas e de galinheiro. Aprendi muita lição na
marra, nos dias de sabatina, ao peso da palmatória e da dor provocada pelas pancadas
que a tal professora aplicava em nossas mãos fechadas em punho, pancadas
rápidas na junção dos dedos. Dava para ver estrelas. O que sobrava de gordura
nas duas irmãs mais novas faltava na professora, que era seca, murcha, ossuda.
Pareciam as Moiras. Ou as Parcas.
Esses tempos de tortura
não duraram muito. E fui salvo pelo gongo. Ou melhor, quando minha mãe
descobriu que eu estava com problemas de fala, pois soletrava algumas palavras
como aprendia com a professora: eu estava falando tatibitati.
Fui literalmente
removido da escolinha. Mas não guardei ódio da bruxa. A nova professora para onde
fui levado era pior. Lição errada, joelho no milho. Ah, aquela branquela
nazista!
Tudo isso ficou na
minha cabeça. E me inspirou.
|
sábado, 3 de agosto de 2013
Entre os muros da imaginação
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Que refrigério! Dei umas gargalhadas no final, dia desses indo pro trabalho ouvia Nico cantora já falecida de nacionalidade Alemã, sua voz tem um ar belo, que gosto muito! Mas enfim, sua sonoridade relaciona-se muito bem com o mormaço dessa cidade. Conexões...
ResponderExcluirVirei fã desse blog!!!! Abraço Ronald :)
Que lindo o poema de Mário de Andrade, não conhecia! "Que porto alegre, Belém do Pará!". Acho que vou gostar de Belém quando conhecer, pelo que Mário falou, Belém tem a ver também com Porto Alegre. O Mercado daqui acredito que não tem munguzá, mas tem várias outras coisas boas também (aliás, não vejo a hora que irão reabri-lo, está em reformas devido a um incêndio).
ResponderExcluirSobre Berlim Oriental lembrei do filme Good Bye, Lenin! A história se passa durante (e depois) da queda do Muro de Berlim, e causou alguns conflitos divertidos. É interessante a transição da reunificação das Alemanhas, super recomendo o filme, é um dos meus favoritos. Beijos.
Nossa, o relógio daí está adiantado, aqui são 12h36, e não 8h36 como apareceu no meu comentário!
ExcluirDaniela, o problema é desta página. Já tentei ajustar a hora,mas o Blogger não aceita a atualização...
ResponderExcluirTambém acho que Porto Alegre e Belém tem coisas em comum, a começar por serem lugares nos extremos do Brasil. Bjks
Daniela, o problema é desta página. Já tentei ajustar a hora,mas o Blogger não aceita a atualização...
ResponderExcluirTambém acho que Porto Alegre e Belém tem coisas em comum, a começar por serem lugares nos extremos do Brasil. Bjks