sábado, 22 de fevereiro de 2014

Pelas esquinas da memória

O mundo é feito de esquinas. O coração também tem seus cantos íntimos.

Parece que foi quase ontem. Olho da minha janela, na Pedreira, e vejo o movimento no sambódromo – não sei chamar a Aldeia Cabana de outro jeito.  Adoro janelas pelo que elas despertam na minha imaginação. A porta da casa é passagem mais simples, mas janelas!... O que dizer dos olhos então que, dizem, são as janelas da alma? Adoro olhar a paisagem, a vida, sentir os olhos em movimento, perceber a luz, divisar formas ocultas nas sombras quando os olhos têm a noite pela frente.

Olho do alto da esquina da Avenida Pedro Miranda com a travessa Enéas Pinheiro e isso me atiça lembranças recentes, faz-me pensar que o mundo é uma esquina, que há esquinas em todas as cidades do mundo. E cada uma dessas esquinas nos diz alguma coisa. Esquinas, cantos, pontos de interseção, paradas, cruzamentos. Clube da esquina, sempre haverá um nas nossas memórias.

Na esquina da minha infância ficava a taberna “Anjo da paz”. Era o ponto de encontro do bairro, na esquina da Rua dos Pariquis com a Travessa Tupinambás, no Jurunas. Tudo índio, tudo parente.  O dono morreu há muitos anos e agora o local é apenas a fachada. Dia desses passei por lá e lembrei-me dos ruídos, dos burburinhos, do pão quentinho da manhã e da tarde que era fornecido pela Padaria Batista Campos. Melhor não arranhar a pele. Há lembranças lindas, mas há uma pontinha de tristeza que sempre provoca saudades, uma saudade cada vez mais escassa de testemunhas.  Mais pobre em compartilhamento. São coisas do mundo minha nega, como num dos sambas mais bonitos de Paulinho da Viola que eu adorava ouvir na voz da Nara Leão.

Hoje eu vim, minha nega
Como venho quando posso
Na boca a mesma palavra
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola
Onde gravei o teu nome...

Vamos deixar o mestre cantar. 

Viva Paulinho da Viola!



Depois dessa, só mesmo implantando um coração leviano para enfrentar os batimentos da saudade.

Olho os arquivos de Berlim e encontro uma esquina que nunca mais vou esquecer.  Tratei de fotografar esse encontro de placas indicadoras: Wiesbadener Strasse c/ Ahrweiler Strasse.

Fiquei hospedado no prédio da esquina, no bairro de Friedenau, uma zona calma e sem os ruídos da Pedreira. Mais tranquilo ainda por causa do inverno de poucos passantes nas ruas e de madrugadas quase silenciosas. Há alguns bons restaurantes italianos na vizinhança, como o Mario e o Pastis. E um cantinho inesquecível, o Hell oder Dunkel, onde a turma se reúne para assistir partidas de futebol e que tem uma cozinha supimpa.  

Berlinda aportou nesta esquina e aqui começou sua aventura em Berlim. Enfrentou frio, foi à rua coberta de neve e deixou o eco de seu carnaval nos corações que pegaram carona nas histórias que deixou por lá...

Enquanto isso...




A noite começa a cobrir a cidade. Jornalistas de todos os continentes invadem a concentração, a dispersão e a avenida toda iluminada para transmitir o grande carnaval. Um pool de emissoras de televisão e rádio mostrará uma nova era para todo o planeta. Do alto de um carro de som, um homem anuncia o grande desfile. Um grupo de dez mulatas esculturais, douradas como a Goldelse, usando um tapa-sexo e grávidas empunha chicotes que giram no ar e laçam sete anões, caracterizados com bigodinhos do Führer e fantasiados com uniformes militares do Exército Vermelho. Eles representam os anjinhos da ala meninos clonados que virá lá pelo meio do desfile. A comissão apresenta uma coreografia intitulada „Crime e Castigo‟. As meninas estão nervosas, olhos brilhantes. Elas são a comissão de frente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Para Sempre Unidos de Berlin. O mestre da bateria apita e o puxador de samba anuncia o carnaval. Ton Ton Garganta de Favela convoca a alegria em plenos pulmões, o esquerdo já contaminado por doença que logo roubará todo ar do artista.

- Olha a avenida aí geeeeente! O mundo todo tá aqui pra mostrar no pé e no gogó o grande desabafo. Fala aí Goldelse querida, nossa poderosa rainha da bateria! Pode levantar o voo que a gente vai cantar pra você subir! Esquenta os tambores mestre Caligari! Vamos nessa! É agora ou nunca!

Ton Ton Garganta de Favela, sua as bicas, camisa encharcada, gelatinoso em sua gordura que lhe faz pesar o samba no pé quando ensaia alguns passos ao ritmo da bateria. Chama os outros cantores. As alas vão se organizando na concentração que fica no Charlottenburger Tor, início do desfile que vai até o Portão de Brandenburgo. Auge do verão. Mas a noite veio com a sombra que Goldelse trouxe do espaço, provocando o eclipse do sol. O carnaval toma conta da cidade, iluminada por todas as luzes. Na concentração, a escola ensaia o samba-enredo.

Ô abram alas pro anjo de ouro passar!
Ninguém consegue calar nossa voz desta vez
A avenida é a grande fronteira do carnaval
Para o mundo unido lutar contra o mal

O puxador do samba incentiva as alas. Coração batendo acelerado. Voz rouca. O samba tem que estar na ponta da língua.

- Vamos lá minha gente, vamos mostrar alegria geral e irrestrita. Tá no sangue! Tá no sangue! E aí Anastácia da Pedreira, dá o grito de guerra da Unidos de Berlin! Vamos arrebentar na 17!

Anastácia, uma negra sessentona da velha guarda de uma escola de samba convidada para a festa, segura dois microfones, enche os pulmões de ar e grita como guardiã das florestas animando tudo. Ton Ton Garganta de Favela faz a contagem regressiva: “Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um! Ataca minha negona amada!!!”

- Acoooooooooooooorrrdaaaaa Berlinnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!!!!

(Berlinda – asas para o fim do mundo.  Capítulo Berlinda 20, Páginas 266/267)


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