sábado, 1 de novembro de 2014

Como equilibristas mambembes

Berlim: um parquinho mambembe é montado ao lado da Igreja Memorial. By Ronald

  
Desperto assim, por vezes, sentindo-me inesperadamente equilibrista de uma corda bamba imaginária a nos roubar o sono quando a gente precisa muito estar dormindo e sonhando, sobressaltado como se enfrentasse o risco da queda livre, seja sob uma lona encardida ou a céu de brigadeiro, num circo onde não há rede de proteção. Essa imagem da vida como espetáculo mambembe é recorrente em mim, anos a fio, no despertar inevitável enquanto isso é possível.

Há momentos que nos arrancam do olhar a alegria, o riso, o suspiro, o suspense costurado na simplicidade com que se desenvolve a cena no seu tempo preciso, nem um segundo a mais. Devo lembrar que o equilibrista é uma atração de tirar o fôlego da plateia, mas há um desfile imperdível de outros tantos personagens depois do equilibrista, como o trapezista e seu salto mortal quádruplo, os malabares, os motociclistas no globo da morte, o atirador de facas, a dançarina sedutora de elefantes e o domador dos tigres e leões, os insubstituíveis palhaços, o comedor de espada e o engolidor de fogo, a mulher gorila ameaçando romper as grades da jaula e provocando gritinhos na mulherada, pavor nas crianças que nem percebem o doce olhar amoroso da mulher de barba ruiva apaixonada pelo anão usado como projétil de um velho canhão de guerra.

 Ultimamente tem sido assim. Não há tempestades anunciando catástrofes, passam chuvas fortes, pampeiros ligeiros, mas o céu depois se normaliza, entre nuvens decorativas e ensaio de um azul que pode ser contemplado sob a luz da hora, do calor da estação. Ainda que na minha cabeça rode um tornado. Um turbilhão de emoções que vai da calmaria do lago ao espetáculo circense.

 Hoje foi desse jeito. Tenho sono profundo, mas posso despertar com o ruído de uma barata passeado pelo quarto, caso haja um inseto de tal porte - o que já ocorreu, raríssimas vezes, mas já me deparei com essa espécie - mesmo considerando que minha pequena fortaleza fica no décimo andar e que é pouco atraente a visitas desse tipo, graças ao rigor da faxina diária comandada pelo Super_Manuel, meu assistente que é, também, DJ.

            Logo cedo fui cutucado pelo som do Messenger. Tudo porque peguei no sono e me esqueci de desligar o bendito aparato ou deixá-lo em outro canto do apartamento. Alguém me pedia desculpas por um incidente que, na verdade, foi coisa boba. Não vou entrar em detalhes. Só quero dizer que percebo estar a vida vazia desse modo simples de reconhecer que pedir desculpa não desfaz o feito, mas refaz o que podia estar irremediavelmente desfeito, esgarçado, descosturado, ter os nós perdidos, alinhavos rompidos.

            Todos nós precisamos dessa delicadeza para suportar o peso ou a insustentável leveza do mundo, do que está fora e do que trasladamos para dentro de nós, como o circo e seus personagens - e ainda tem o bilheteiro e o vendedor de guloseimas e garotos que encontram passagens secretas até à arquibancada, por astúcia ou pacto com seus diabinhos travessos.

            Gira o mundo, gira o carrossel, meus sonhos mambembes, meus pesadelos luxuriantes e a simplicidade das coisas. É, ando meio assim, entre lá e cá. Às vezes me desconheço, às vezes me perco de mim.
           
Acho que devo pedir desculpas mais vezes às pessoas no geral e agradecer, da mesma forma que agradecemos à corda que bambeia, mas não rompe e assegura que o equilibrista consiga ir de ponta a ponta, olhando do alto o picadeiro, nos ensaios diários, ou os vazios de uma plateia que nem vá gerar um borderô capaz de pagar a noite. Uma forma de exercitar a delicadeza.

Fui dormir me sentido equilibrista de um espetáculo solitário. Acordei com a sensação de ser um equilibrista prestes a despencar. Fui expatriado do sono que me acalentava, que me tirou o amargo da poesia que deixo aqui e na qual falo do tempo que passa pela gente porque não duvida do ofício. O tempo é sábio quanto a isso, sabe do seu eterno rito de passagem. Não podemos ser como ele. Somos apenas passageiros. Ele é a travessia e nós, simples atravessadores à procura de atalhos e transversais. Fazer poesia não é simples, mas gosto de me instigar. E aos poucos ir compartilhando essas saliências poéticas.

O tempo dispensa consentimento
Não precisa nos pedir passagem
E às vezes me dano por não considerar
Que isso se dá sem a menor sutileza,
Sem gentilezas, pois outra é a química

Outras são as camadas do tempo
Sem o envelhecimento das células
Ou o enrugamento inexorável da pele
Sem a despigmentação da alma
Sem o enrijecimento dos nervos

Sem o esfrangalhamento dos ossos
Ou a oxidação do pensamento
Sem a dilaceração das cordas vocais
Ou a dor da úlcera recidiva, da lágrima ácida.
Erodindo os territórios da fantasia.

Aprendi quase nada da indiferença
Como a que faz o tempo se desnudar sem medo.
Medo é próprio dos homens, não do tempo
Então brinco de inventor, faço inventários
Baseado numa espera que me exaspera

O tempo nada espera, eu sou um lapso
O tempo é inteiro e eu um pseudo fractal
 Mas se ele me escapa ao entendimento
À razão universal que ouso pensar de mim
Escorre também para o vazio inevitável.

O que ficará da minha história para o tempo
Que não privilegia a memória a definhar-se?
O que restará do amor que podia me dar liberdade
Mas que preferiu se escravizar ao tempo?
Nada. Tudo é negação à luz dos olhos do mundo. 

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